Cuscos
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Descrição: Os cuscos são grãos aglomerados de farinha, cozidos a vapor com o auxílio de um recipiente próprio (a cuscuzeira), e secos ao ar ou ao sol, para poderem ser conservados durante vários meses. Com alguma pontualidade durante o ano, geralmente na Primavera ou no Outono, apenas algumas mulheres de algumas localidades de Vinhais e Bragança ainda confecionam os cuscos. Para isso, recorrem às masseiras de madeira onde colocam a farinha.

Caraterísticas particulares: Ricos em carboidratos e de sabor semelhante ao das massas italianas e de textura próxima à do arroz, com grande versatilidade pode ser servido como acompanhamento de uma vasta quantidade de pratos de carne ou peixe, em sopas e ainda em doces.

Região: Trás-os-Montes (aos dias de hoje nos concelhos de Bragança e Vinhais)

Ingredientes Utilizados: Farinha de trigo, água e sal. Complementarmente, podem utilizar-se ovos e ervas aromáticas.
Saber fazer: Para a confeção dos cuscos recorre-se às masseiras de madeira, convencionalmente utilizadas para confecionar o pão, e onde se deita a farinha que se pretende transformar em cusco.
A farinha é então polvilhada ou salpicada com água morna e salgada, com o auxílio de uma vassourinha de gesta ou sacudindo os dedos. São estes salpicos de água que vão ajudar a formar os grãos de cusco. Com a palma das mãos, calcando ou "acarinhando" a farinha, em movimentos circulares, que devem "ir" sempre na mesma direção, vão-se formando as bolinhas, uma ação a que se chama "torcer" o cusco. Dizem as cozinheiras de cuscos que é importante "torcer" sempre para o mesmo lado para "não destorcer" ou "não desfazer o que se fez".
Esta etapa de "torcer" o cusco é bastante longa e exigente do ponto de vista físico. Por isso é, regra geral, privilegiado o auxílio e a companhia de outras pessoas, para ajudar ao trabalho e a passar o tempo. O tempo que a tarefa demora depende ainda da quantidade de farinha que se utiliza e da quantidade de cuscos que se deseja obter.
Uma das características particulares da confeção dos cuscos de forma artesanal é a obtenção de grãos de calibre variado. Para obter uma variação mais uniforme os grãos de cuscos vão sendo peneirados com o auxílio de um crivo. Os grãos de tamanho ideal são reservados, os grãos menores regressam à masseira para serem de novo salpicados com água e torcidos e os grãos maiores são desfeitos com as mãos.
À medida que os grãos se vão formando, o "rugir" da ação de esmagar o grão contra a madeira da masseira vai-se alterando. O ruído dos grãos que roçam, rolando entre as mãos e a madeira da masseira vai-se intensificando até ao final, determinado pelo gosto de cada cozinheira e pela técnica de apertar os cuscos, segundo a qual quando apertando duas mãos cheias de grãos estes se soltam facilmente, o cusco está pronto.
Depois deve deixar-se repousar e secar (entre uma a duas horas). Depois da pausa, põe-se na lareira, um pote de três patas com água. Dentro da cuscuzeira - um recipiente próprio de barro, ou de lata em alternativa - coloca-se um pano (habitualmente de linho) e enche-se a cuscuzeira com cuscos. Depois de bem-acondicionados e envoltos e cobertos pelo pano de linho coloca-se a cuscuzeira sob o pote de água fervente. A intersecção entre a cuscuzeira e o pote é vedada com uma massa de água e farinha, para não deixar escapar o vapor do pote. Cerca de uma hora a hora e meia depois, o cusco está pronto. A este aglomerado de grãos de farinha que de novo se dispõem na masseira, chama-se "carola”, que pode ser consumida ainda quente, com mel ou açúcar ou mesmo simples.
A "carola" é então de novo desfeita em grãos que são mais uma vez torcidos na masseira. Depois de separados os grãos de cuscos são postos a secar ao sol ou num local arejado da casa, sob uma mesa ou uma toalha. Decorridos pelo menos dois dias os cuscos já podem ser ensacados e conservados em sacos de pano, para serem consumidos durante o ano, como substituto do arroz ou das massas ou ainda em "sopa de cusco" com leite (servida como entrada e não como sobremesa uma vez que não se trata de um prato doce).

Formas de Comercialização: Tratando-se de um produto sazonal, pode-se encontrar para venda a granel em feiras e mercados locais.

Disponibilidade do produto ao longo do ano: Maior disponibilidade nos meses de Outono e Inverno.

Historial do produto: Com origem no Norte de África o aparecimento do kuskus (do berbere ou do árabe pronunciando-se ku:sku:s) na dieta alimentar das populações daquele território é difícil de precisar. São os achados arqueológicos de objetos feitos em argila e semelhantes às "cuscuzeiras" que ainda hoje se utilizam na sua cozedura e também das marmitas onde iriam colocados, que nos remetem para a sua preparação e consumo no século IX, naquela região (Vasconcelos, 2014).

É com as conquistas islâmicas que o kuskus se expande pelos países da África Subsariana e do Mediterrâneo, chegando à Península Ibérica (ou Al-Andaluz, nome dado então pelos conquistadores islâmicos a este território peninsular).
Esta evolução ou transformação das práticas alimentares é acompanhada pela evolução da cultura dos cereais, em particular o desenvolvimento da cultura do trigo duro (Triticum durum), que encontra na Península Ibérica condições climatéricas favoráveis.
Em "Alimentos e Alimentação no Portugal Quinhentista" (2002), Isabel Fernandes, caracteriza a disseminação de receitas variadas à base de trigo por todo o país e o consumo comum de cuscuz à época, citando João Brandão que em 1552 descrevia assim o seu consumo em Lisboa: "E digo que nesta cidade há cinquenta mulheres, entre brancas e pretas, forras e cativas, que em amanhecendo saem na Ribeira com panelas grandes cheias de arroz, e cuscuz e chícharos, apregoando." (Brandão, in Fernandes, 2002:136)
O cuscuz chegará então a fazer parte da ementa das cortes portuguesas «Em novembro de 1524, à mesa de D. João III, iam os cuscuz "para cuscuz del Rei de vaca cinco arráteis".» (Santos, in Fernandes 2002:136). Em Jantar e cear na corte de D. João III Maria José Azevedo Santos observa que «a carne ocupava, na alimentação da alta sociedade quinhentista o primeiro lugar» e que «chegava à mesa do Rei, cozida, em pastel ou para cuscuz, formas de a cozinhar comuns nesta época de Quinhentos» (Santos, in Fernandes 2002:145).
Atestando o seu consumo generalizado entre "nobres e pobres" no Portugal quinhentista, é ao Rei D. João III, em 1525, que Gil Vicente apresentará a obra teatral O Juiz da Beira, fazendo o Escudeiro queixar-se do cruzado que a personagem, Ana Dias gastara em cuscuz.
Também o regimento e taxa de oleiros conimbricense, datado de 1573, refere o fabrico de cuscuzeiros (recipiente próprio para a cozedura a vapor do cuscuz) em loiça vidrada. Mas «com o passar dos anos, novos hábitos alimentares afastaram os portugueses do consumo de cuscuz, tendo, por isso, os oleiros deixados de produzir o recipiente onde estes eram cozidos - o cuscuzeiro» explica Isabel Fernandes: «não havendo quem procure o recipiente, deixa de haver quem o produza - extingue-se a necessidade da vasilha, extingue-se a sua produção» (2003: 23).
O neto do Rei Dom João III, D. Sebastião virá mesmo a legislar contra o consumo "excessivo" de cuscuz. É assim, através dos documentos do Santo Ofício da Inquisição (séc. XVI), que se percebe a relação entre as práticas dos muçulmanos convertidos ao cristianismo, então chamados mouriscos, e as suas práticas alimentares, que terá levado à "perseguição" do seu consumo.
Assim além de ter sido um alimento passível de conservar por um longo período e um ótimo substituto do arroz, e massas e por isso muito apreciado pela generalidade da população dos campos rurais às cortes portuguesas, o consumo de cuscuz aparece também associado a cerimónias festivas e fúnebres praticadas pelos muçulmanos e judeus do Magrebe, e que no Portugal do século XVI continuam a ser praticados pelos mouriscos. Barros e Tavim (2013), analisando os processos inquisitoriais sobre as cerimónias religiosas muçulmanas, referem por exemplo o "presentear dos mortos".
Mouette Barboff (2010) diz sobre o consumo do trigo em Portugal que a prática de fazer cuscuz artesanalmente se verifica ainda no nordeste transmontano, na ilha de Santa Maria do arquipélago dos Açores e na ilha da Madeira.
Segundo Barboff, em Trás-os-Montes observam-se variantes quanto ao elemento que serve de base à confeção dos grãos de cuscuz. Citando o autor transmontano, Afonso Belarmino (1982) o cuscuz transmontano (que assume a designação comum de "cuscos") pode ser preparado com farinha de trigo mole (farinha triga) ou sêmola de trigo duro, particularmente apreciado pela sua qualidade. Segundo as referências de Belarmino Afonso (in Barboff, 2010: 49-50) na região de Bragança e Vinhais, os cuscos são preparados uma vez por ano, para todo o ano, no outono. Ainda segundo o autor o trigo era moído nos moinhos com mós "alveiras" (feitas de pedra de calcário e mais próprias para moer o trigo). Depois a farinha seria salpicada com água tépida salgada com o auxílio de uma rama de salgueiro. Utilizados para engrossar as sopas, os cuscos, refere Belarmino Afonso, serviam para substituir arroz e massas, suprindo as necessidades alimentares das populações mais modestas.
Alfredo Saramago (1999) descreve a confeção de cuscuz na obra que consagra à cozinha transmontana fazendo referência ao modo como são preparados na região de Vinhais. Sem especificar a variedade de trigo utilizada salienta que se trata de uma farinha "mal moída". O processo, de confeção em quase tudo semelhante ao processo descrito por Afonso Belarmino, diverge numa pequena curiosidade. Em vez da rama de salgueiro Saramago refere a utilização de uma vassourinha de piaçaba (uma espécie de palmeira de origem brasileira com folhas fibrosas).
 
Outros elementos documentais (escritos, fotográficos, videográficos, etc):
AFONSO, Belarmino (1982), O Cozer do Pão.
BARBOFF, Mouette (2010), Couscous de blé et semoule de mais au Portugal, in Hélène Franconie, Monique Chastanet et François Sigaut (orgs.), Couscous, boulgour et polenta: transformer et consommer les céréales dans le monde. Paris: Kharthala Editions, 47-54.
BARROS, Maria Filomena Lopes de e TAVIM, José Alberto Rodrigues da Silva (2013), "Cristãos(ãs)-Novos(as), Mouriscos(as), Judeus e Mouros. Diálogos em trânsito no Portugal Moderno (séculos XVI-XVII)". Journal of Sefardic Studies, 1 (2013), pp. 1-45.
FERNANDES, Isabel (2002), Alimentos e Alimentação no Portugal Quinhentista. Revista de Guimarães, nº 112, pp. 125-215.
FERNANDES, Isabel (2003), De barro se faz memória, in Raquel Henriques da Silva, Isabel Maria Fernandes, Rodrigo Banha da Silva, Olaria Portuguesa: do fazer ao usar. Lisboa: Assírio & Alvim, 17-33.
MARCELINO, Adozinda MARTINS, Acúrcio, (2015), Memórias Da Cozinha Transmontana. Âncora Editora.
MODESTO, Maria de Lurdes (2014), Sabores com Histórias. Oficina do Livro.
MONTEIRO, António (2014), Comidas Conversadas. Âncora Editora.
SARAMAGO, Alfredo (1999) Cozinha Transmontana. Assírio & Alvim.
VASCONCELOS, Isabel (2014), À volta do cuscuz. O Gorgulho - Boletim Informativo sobre Biodiversidade Agrícola, Ano 11 - Nº 32, Inverno 2014, pp.23-26.